quarta-feira, 26 de maio de 2010

Com alma e ritmo

Entrei na quintadê como todas as quartas.

Mas antes. O clima que circunda não é muito confiável mas nem fiz questão de me preocupar. Minhas duas crianças iluminadas que levaram bronca - mulecagem prá variar - me receberam com aquele sorrisinho de quem fez arte. Depois da bronca, sairam lá fora prá me contar. Ganhei dois presentes. Um abraço de cada. Não queriam ir prá sala, já dizia o Gabi: "- É muito chato estudar". E é mesmo Gabriel, eu disse. Estudar aqui é muito chato mesmo e em qualquer escola pública. Porque iria ser legal? É legal ser obrigado a ficar numa sala quente pequena, sem janela, só com vitrozinhos, duas turbinas de ventilador, com 30 e poucos colegas cheios de energia prá gastar e uma louca tentando coordenar do seu jeito as aulas???
Ainda bem que são lúcidos!
Mas disse que por outro lado o conhecimento é legal. A sensação de descobrir algo que não sabia, poder falar de algo que antes desconhecia, poder se defender de coisas que antes nem sabia que tinha direito! Mas isso é conhecimento, não só informação. Envolve um processo reflexivo, eu disse. E tem que ter calma para isto. Tem que ter respeito, tem que ter cuidado. Tem que ter reciprocidade.
Grande conceito que a cada dia tento ensinar para eles de uma forma diferente. E acho que já estão sacando...
Depois dessa conversa esqueceram que não queriam ir para a sala. E sairam andando.

Fumei meu cigarrinho lá fora como de costume, me embebi da entrevista deliciosa e interminável do Tunzé e peguei um livrinho no estocador de livros para preparar mais ou menos o assunto que geraria a discussão na sala.
Segundo cigarrinho, mais um cafézinho e entrei.

Senti que era hora de falar de História. Mas não apenas da civilização da China e da Índia como estava proposto no livro. Senti que era fundamentar em todos os sentidos a história. E EM TODOS OS SENTIDOS literalmente.

Então resolvi fazer uma bagunça. Mas uma bagunça organizada. Cadeira prálá, cadeira prácá. Pronto. Com uma cadeira no centro da sala, subi e pedi para sentarem em volta de mim. Então joguei minhas sandálias do outro lado. E pedi para fazerem o mesmo. -"Tirem os sapatos. Sintam o chão". Essa foi uma experiencia de uma querida amiga da filosofia das crianças que me deu, que adaptei. -"sintam o chão, o que sentem?"

-"É frio"- disseram eles
-"É sujo"
-"É duro"

E é mesmo, eu disse. Ai já começaram a dispersar. Tum. tum. tum... comecei a bater as mãos devagarzinho. Olhares estranhos. deviam pensar: que dona maluca é essa! Até que um dos aluninhos começou a bater comigo. E todo mundo no mesmo ritmo bateu também.
Parei. Voltou o silêncio. E disse porque estava fazendo aquilo.
-"Estou falando de História quando peço para sentirem o chão. Porque também é terra. É raiz. Mais do que ser frio, sujo e duro é raiz. E raiz é a gente. raíz é da onde a gente veio. raíz é nossa história. E somos o que somos hoje porque os homens no começo se relacionaram. E se relacionaram juntos prá poder aprender a caçar, a falar, a se defender, a fazer música, a fazer arte. E tinha que ser junto. Se não a sociedade não existiria. E todo mundo era igual. Trabalhava prá todo mundo. O bem de um era o bem de todos.
E, meninos e meninas, quando que foi que essa coisa bonita mudou? Quando que foi que a sociedade começou a andar prá tras de novo? Quando o homem começou a querer fazer tudo sozinho prá ele mesmo. Mas isso já faz tempo? Talvez 200 anos. Mas é muito 200 anos? Quantos anos tem a humanidade? uns milhares... hummm... então faz bem pouquinho tempo que a sociedade começou a seguir outro rumo. Em vez de se desenvolver "para melhor" agora a gente tem catástrofe ambiental, enchentes, mortes por fome, violência, desemprego cada vez em ritmo mais acelerado.
...(uma pausa para reflexão)
Por isso que a gente tem que ficar descalço. tem que usar todos os sentidos para poder conhecer e apreender a realidade, a nossa história e a nossa História, que afinal de contas, é a mesma.
A gente não aprende só com os olhos e com o ouvido. É com o tato, com o alfato e com o coração. Tudo junto. Assim como nossos antepassados que passaram por tanta coisa prá gente tá aqui hoje.
E a gente esquece. A gente acha que a gente apareceu sozinho. Que as coisas são assim mesmo.
Por isso que a gente tem que por o pé no chão. Prá não esquecer nossas raízes. Prá não esquecer dos que já passaram e o que devemos a eles. Prá não esquecer que na maior parte do tempo os homens não sabiam o que era egoísmo, mesquinhes e arrogância.
Por isso lembrem-se sempre disso quando colocarem o pé no chão descalças. Porque não é apenas chão."

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